Úteros em cárcere: grávidas e crianças sob a negligência do sistema prisional brasileiro

Relatório da Secretaria Nacional de Políticas Penais revela que mais de 180 mulheres grávidas e 120 bebês vivem nas penitenciárias brasileiras

Reprodução: Portal Bueno

Por Nathália Baron

No segundo semestre de 2024, o sistema prisional brasileiro registrava 180 mulheres grávidas, 98 lactantes e 120 crianças vivendo em celas com suas mães. A maioria das crianças tinha até seis meses de idade. Os dados são do Relatório de Informações Penais (RELIPEN), produzido pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN).

Entre as 316 unidades prisionais femininas em funcionamento no país, 59 possuem celas ou dormitórios específicos para gestantes, 52 oferecem berçários e apenas seis contam com creches. O mesmo relatório aponta que a população prisional feminina somava 29.137 pessoas até dezembro de 2024, correspondendo a 4,3% do total de presos. A estrutura das prisões, no entanto, permanece majoritariamente inadequada para atender às especificidades de gênero e maternidade.

Embora a legislação brasileira preveja medidas alternativas à prisão para mulheres gestantes ou responsáveis por crianças pequenas, a aplicação dessas garantias permanece limitada. Entre os principais instrumentos legais estão o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016) e a alteração do Código de Processo Penal pela Lei nº 13.769/2018, que possibilitam a substituição da prisão preventiva pela domiciliar.

Um sistema pensado por e para homens

As prisões brasileiras foram inicialmente projetadas para abrigar homens. A primeira grande instituição, a Casa de Correção do Rio de Janeiro, inaugurada em 1834, não previa espaços específicos para mulheres. Quando detidas, elas eram enviadas a locais improvisados ou separadas em setores internos das unidades masculinas, sem regulamentação formal para o tratamento diferenciado.

Somente na década de 1930 começaram a ser criadas unidades penais femininas. Em Porto Alegre, foi instalada a primeira penitenciária para mulheres, em 1937, seguida pela do Rio de Janeiro, em 1942. Ambas ficaram sob a gestão de freiras da Congregação do Bom Pastor d'Angers. A iniciativa partiu da obrigatoriedade estabelecida pelo Código Penal de 1940, que, em seu artigo 29, determinou o cumprimento de pena em estabelecimento especial para mulheres, ou, na ausência, em seção apropriada.

A regulamentação, contudo, não alterou de imediato as práticas consolidadas nas instituições. A administração dos primeiros presídios femininos permaneceu condicionada a valores morais e religiosos, frequentemente pautados na “reeducação” das mulheres, e não na ressocialização penal. É o que indica o artigo “Apontamentos para uma história dos presídios de mulheres no Brasil” realizado em 2018 pela antropóloga Bruna Angotti e pela socióloga Fernando Salla. 

O modelo prisional masculino continuou a predominar nas décadas seguintes, influenciando as estruturas físicas e as rotinas institucionais. Ainda hoje, a maior parte das penitenciárias não dispõe de ambientes adequados para mulheres, especialmente para gestantes e mães que permanecem com seus filhos durante o cumprimento da pena.

Violação de direitos maternos

Gardenia foi presa quando estava com sete meses de gestação, mas o tamanho de sua barriga não a impediu de ser tratada com violência pelos policiais que a deteram. Já na delegacia, a violação física e psicológica adiantaram seu parto em dois meses. Só conseguiu o direito de ser levada ao hospital depois de começar a gritar de dor a cada contração, mas não escapou de ser algemada à maca até a chegada de sua médica.

Não teve o direito de segurar seu bebê e nem de amamentá-lo corretamente. Passou pelos primeiros dias do pós parto algemada e só podia ir ao berçário quando um dos guardas de plantão permitisse. Os pontos da cesária inflamaram dias depois de voltar para a cela. Impedida de retornar ao hospital, sob a alegação de falta de viaturas, precisou se curar sozinha.

O relato de Gardênia compõe o livro “Presos que Menstruam”, de Nana Queiroz, e não representa um caso isolado. Mesmo depois da aprovação da Lei do Parto Livre (13.434/2017), que proibiu o uso de algemas durante o parto, grávidas apenadas seguem sendo alvo desse e de outros tipos de violência. É o que denuncia Mary Jello, egressa do sistema prisional e uma das fundadoras do Coletivo Por Nós, que há seis anos oferece suporte afetivo, médico e legal para detentas da capital paulista.

"A saúde mental já é muito abalada no momento em que a gente está dentro de uma prisão. E quando se trata de mulheres grávidas, essa violação é ainda maior. Elas têm direito a uma alimentação saudável, adequada às necessidades nutricionais, mas isso não acontece. A alimentação é a mesma para todas, muitas vezes estragada, e ainda há falta de água, até para a própria higiene”, esclarece.

Distribuição numérica de gestantes e lactantes sob custódia do sistema penitenciário estadual, conforme união federativa.

Essa carência de infraestrutura compromete diretamente o atendimento às necessidades básicas das mulheres presas e de seus filhos. Em muitas unidades, o espaço destinado a gestantes e lactantes é improvisado, quando existente, e carece de equipamentos adequados, como berços, materiais de higiene e acompanhamento especializado.

Um levantamento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) apontou que mais de 58% das penitenciárias não fornecem regularmente materiais básicos para bebês. Esse déficit afeta a qualidade do cuidado e expõe mães e crianças a riscos à saúde. 

Apesar de normas nacionais e internacionais estabelecerem parâmetros mínimos de acolhimento e assistência, como o acesso à alimentação adequada e ao atendimento pré-natal, a aplicação dessas garantias é insuficiente. A Lei de Execução Penal prevê assistência à saúde da mulher presa, mas na prática faltam equipes e políticas integradas.

“Toda grávida deve receber amparo adequado, com pré-natal e acompanhamento médico durante o parto. Mas, infelizmente, não são direitos garantidos. A maioria das unidades prisionais não faz esse acompanhamento", completa Mary Jello.

Abandono em números

Das 120 crianças que vivem com suas mães em unidades penais, a maioria, 105, tem até seis meses; outras 14 têm entre seis meses e um ano; e uma criança está na faixa etária de um a dois anos. Esses números indicam a presença contínua de crianças em ambientes de privação de liberdade em um momento crucial do desenvolvimento e revelam a dificuldade de aplicação de políticas alternativas, como a prisão domiciliar.

Segundo o RELIPEN, de um total de 316 presídios femininos em funcionamento no país, apenas 59 possuem celas ou dormitórios específicos para gestantes, enquanto 52 oferecem berçários. A presença de creches é ainda mais reduzida: apenas seis unidades. A distribuição desigual desses espaços dificulta o atendimento às necessidades básicas de mães e filhos.

A ausência de creches e berçários adequados restringe ainda mais o tempo e a qualidade do convívio materno-infantil. Com isso, limita-se também o acesso das crianças a estímulos essenciais para o desenvolvimento, pois o convívio ocorre predominantemente em celas comuns, muitas vezes sem estrutura adequada para garantir condições mínimas de saúde e bem-estar, agravando os efeitos do encarceramento nos primeiros anos de vida.

Número de crianças sob custódia do sistema penitenciário estadual, conforme regiões do Brasil.

Descumprimento do direito à prisão domiciliar

A possibilidade de substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças pequenas está prevista na legislação brasileira desde 2018, com a aprovação da Lei nº 13.769. A norma alterou o Código de Processo Penal e consolidou um direito já apontado pelo Marco Legal da Primeira Infância.

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal reforçou essa garantia ao conceder o Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, determinando a concessão da prisão domiciliar para todas as mulheres presas preventivamente que fossem gestantes ou mães de crianças até 12 anos, desde que não envolvidas em crimes com violência ou grave ameaça. A decisão foi tomada com base na prioridade absoluta dos direitos da criança, estabelecida no artigo 227 da Constituição.

Na prática, no entanto, a aplicação da prisão domiciliar enfrenta obstáculos. Segundo o relatório “Nascer no Cárcere: O abandono institucional de bebês e crianças nas penitenciárias brasileiras” de Sofia F. T. (2023), entre 10% e 80% das unidades prisionais não reportam dados sobre gestantes, lactantes ou crianças, o que inviabiliza o monitoramento da política. Além disso, decisões judiciais continuam negando o benefício com base em argumentos genéricos, como o risco à ordem pública.

Uma das mulheres que teve o direito à prisão domiciliar negado foi Janaina. Mãe de dois meninos, um de oito e outro de treze anos, ela solicitou a mudança de regime penal depois do pai das crianças se negar a acolhê-las. O pedido foi indeferido sem causa aparente e nos quase dois anos em que esteve em regime fechado, lutou diversas vezes para não perder a guarda dos filhos.

A ausência de fiscalização efetiva e a subnotificação dos dados dificultam a avaliação do alcance da prisão domiciliar. Sem informações precisas, torna-se inviável dimensionar quantas mulheres poderiam ser beneficiadas e quantas efetivamente cumprem pena em casa, evidenciando o descompasso entre a previsão legal e a realidade prisional.

Mary Jello aponta que, além da medida dificilmente ser aplicada, ela ainda não atende a todas as realidades “Uma mulher que é moradora de rua, já não tem esse direito. A criança é tirada dela aos seis meses para ir para um abrigo e ela perde o direito de maternar, mesmo posteriormente, quando ela ganhar a liberdade.”

Principais impactos do cárcere sobre a saúde e desenvolvimento na primeira infância

Marcas do cárcere no desenvolvimento infantil

O estudo “Infância no contexto prisional: reflexões sobre processos educativos e dignidade humana”, conduzido por Marilúcia Peroza em 2018, na Penitenciária Feminina do Paraná, aponta efeitos significativos do ambiente prisional no desenvolvimento de crianças que vivem com suas mães durante os primeiros meses de vida. Os principais pontos identificados foram atrasos no desenvolvimento cognitivo, dificuldades na aquisição da linguagem e fragilidade no vínculo afetivo entre mães e filhos.

O caso de Cássia, nascida na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, no Rio Grande do Sul, ilustra esses efeitos. Apesar de viver em uma unidade materno-infantil estruturada, com berço próprio, brinquedos e acompanhamento pediátrico, a menina chorava constantemente e evitava interações. 

O cenário mudou quando ela completou 10 meses e saiu da penitenciária pela primeira vez para passar a semana com a família materna. Conforme descrito no livro de Nana Queiroz, quando voltou “A mãe [...] ficou boquiaberta com a filha que recebeu de volta. Agora, Cássia pede colo para as outras presas e carcereiras, aprendeu a bater palminhas e sorri de maneira gratuita e espontânea. Aquela criança tímida e rígida estava socializada.”

O ambiente prisional é caracterizado por limitações de espaço, rotinas rígidas e oferta restrita de estímulos sensoriais, condições que interferem no processo de desenvolvimento infantil. O relatório do Conselho Nacional de Justiça (2022) indicou que a separação precoce entre mãe e filho, prática comum no sistema brasileiro a partir dos seis meses de idade do bebê, pode provocar impactos psicológicos duradouros, como padrões de apego inseguro e dificuldades nas relações interpessoais.

A pesquisa “Nascer no Cárcere” reforça a dificuldade de acesso a cuidados de saúde e assistência social adequada para as crianças e suas mães. As condições físicas das unidades prisionais, muitas vezes insalubres, expõem bebês a riscos à saúde, enquanto a ausência de profissionais especializados limita a oferta de apoio emocional e educativo.

Ketelyn, a recém-nascida que Gardênia foi impedida de abraçar, é mais uma criança afetada pelas dinâmicas do cárcere. A menina passou a exigir idas constantes ao médico e, muito cedo, desenvolveu um comportamento que ninguém soube explicar: todas as noites, batia a cabeça na parede repetidas vezes, até adormecer.

Na ausência de políticas públicas que garantam condições adequadas para a convivência entre mães e filhos no sistema prisional, novas Ketelyn seguem nascendo nas penitenciárias brasileiras.


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