O efeito borboleta por trás da crise do chocolate
O que está por trás da crise do cacau que coloca o hábito mundial de consumo em risco de extinção.
Fruto que é essencial na produção do chocolate | Foto: MAPA
No final de março, a Nestlé anunciou que um dos seus produtos mais famosos — a bolacha amanteigada Passatempo — voltaria à sua receita original do início dos anos 2000. Embora o anúncio tenha sido feito com uma narrativa nostálgica e afetiva, a realidade por trás da decisão é mais amarga — e mais cara.
A mudança atende a inúmeras reclamações recebidas nos últimos anos sobre a qualidade do produto, que perdeu seu sabor característico e marcante de chocolate. Essa alteração está diretamente ligada à crise do cacau, que tem afetado o mundo inteiro devido à alta dos preços na Bolsa de Nova York.
O chocolate está mais caro, e este é o segundo ano consecutivo em que os produtos de Páscoa chegam às prateleiras com nova composição: ingredientes diferentes, redução de tamanho e queda na qualidade. As marcas já não conseguem mais esconder essa realidade do consumidor final.
Neste ano, ao chegarem aos supermercados, os consumidores notaram que os preços estavam ainda mais altos do que em 2024. Se no ano anterior o aumento já havia sido percebido — ainda que fosse possível encontrar alternativas mais acessíveis —, em 2025 até mesmo as tradicionais caixas de bombom sofreram um reajuste expressivo. Segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), os ovos de Páscoa devem ficar, em média, 9,5% mais caros neste ano, o que deve impactar ainda mais o bolso de quem esperava uma celebração menos pesada financeiramente do que a do ano passado.
O Brasil está entre os países que mais consomem chocolate no mundo. Apesar de ser produtor de cacau, a quantidade colhida por safra não é suficiente para suprir a demanda interna, o que obriga os fabricantes a importarem derivados do fruto. Em 2024, três estados brasileiros produziram, juntos, cerca de 296 mil toneladas de cacau — o que representa apenas 5% da produção mundial, segundo o IBGE.
Ainda em 2024, o ovo de Páscoa mais caro encontrado nas prateleiras chegou a R$149,99, da marca italiana Ferrero, enquanto o mais barato custava R$37,90, da Arcor. Diante dessa variação de preços e da queda na qualidade dos produtos, muitos consumidores passaram a optar por bombons e barras de chocolate, que responderam por 50% das vendas e impulsionaram um aumento de 15% no consumo. Em 2025, o valor do ovo de Páscoa da Ferrero já alcança R$150,00 nos supermercados brasileiros.
Brasil e sua nova ascensão no mercado do Cacau.
O Brasil e o cacau baiano têm uma longa história, marcada por um período de ascensão e domínio dos mercados nacional e internacional, da década de 1930 até a de 1970. No entanto, essa trajetória foi interrompida por uma queda brusca, causada por uma crise que durou 20 anos, provocada pela praga conhecida como vassoura-de-bruxa.
Após esse período crítico, o Brasil perdeu o posto de maior produtor de cacau do mundo, ocupando atualmente o 6º lugar no ranking global, segundo o último relatório da Organização Internacional do Cacau (ICCO), divulgado em 2024.
Embora o país ainda tenha uma produção expressiva, ela não é suficiente para atender à demanda interna. Isso faz com que os fabricantes de chocolate e seus derivados precisem importar manteiga, pasta e licor de cacau de outros países.
A produção nacional não é voltada exclusivamente ao consumo interno. Em entrevista ao Agro Estadão, Anna Paula Losi, presidente-executiva da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), explicou que a importação feita pelo Brasil hoje visa suprir as demandas de clientes internacionais. “O Brasil é o único país da América Latina que produz derivados tanto para o mercado interno quanto para o externo. Se não houver importação, perdemos um importante mercado”, destacou Losi.
Essa dinâmica de comercialização interna e externa ajuda a explicar por que os produtores nacionais não conseguem atender plenamente os dois mercados, que vêm crescendo ano após ano.
Bahia e Pará são os maiores produtores de cacau no território brasileiro, totalizando 95% da produção nacional. Em seguida, aparecem Espírito Santo, Rondônia, Amazonas e Mato Grosso. Ao todo, o cultivo abrange uma área de 700 mil hectares. Desde 2020 são produzidas cerca de 220 mil toneladas por ano. Segundo dados do IBGE, o país produziu 273 mil toneladas em 2022.
No entanto, há um movimento de investimento em novas tecnologias, pesquisas e expansão de áreas cultiváveis para outros estados, como São Paulo, que já conta com 400 hectares dedicados ao cultivo de cacau. A expectativa é que, até 2030, o Brasil alcance o 3º lugar no ranking mundial de produção.
Esse avanço pode representar uma alternativa estratégica diante da crise climática que vem afetando grandes produtores globais como Costa do Marfim e Gana — o que pode transformar profundamente a cadeia mundial de produção e consumo de cacau e chocolate.
Mudança climática e as produções:
Segundo dados da Organização Internacional do Cacau (ICCO) e da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), a Costa do Marfim, país da África Ocidental, consolida-se como o maior produtor mundial de cacau. Em 2024, a produção marfinense atingiu cerca de 2,18 milhões de toneladas anuais, representando 44% da produção global do fruto. O país se destaca nas exportações de amêndoas, pasta e manteiga de cacau. Gana, o segundo maior produtor mundial, registrou aproximadamente 680 mil toneladas no mesmo período.
Apesar de ocuparem o topo do ranking de produção, os países do continente africano enfrentam desafios crescentes que impactam a qualidade e a quantidade do cacau produzido. O fenômeno El Niño intensificou as temperaturas e alterou os padrões de chuva na região.
A faixa de temperatura ideal para o cultivo do cacau situa-se entre 18°C e 32°C. No entanto, devido às mudanças climáticas, as áreas de plantio têm experimentado níveis de temperatura superiores ao ideal. As alterações nos regimes de chuva também prejudicam os produtores dessas regiões, com períodos de seca severa ou chuvas excessivas afetando negativamente as lavouras. Estima-se que a Costa do Marfim já perdeu cerca de 50% de suas terras agricultáveis devido a esses fatores.
Doenças e pragas, a exemplo da vassoura-da-bruxa que assolou o Brasil por vinte anos, também começaram a se disseminar nos solos africanos, comprometendo a saúde das plantações. A limitada disponibilidade de tecnologias agrícolas avançadas, que poderiam contribuir para a sustentabilidade da produção, agrava as dificuldades enfrentadas pelos maiores produtores de cacau do mundo. Apesar das projeções de aumento no faturamento para esses países, a produção precisou ser reduzida, o que pode gerar impactos econômicos significativos para os países e para o consumo global de chocolate.
Além desses fatores, o cacau produzido mundialmente é comercializado na bolsa de Nova York, por meio de diversas modalidades, incluindo contratos futuros, definição de preços e cotações, além da participação no mercado. O valor do fruto havia registrado uma alta significativa de cerca de 190% nos últimos anos. Contudo, o preço na bolsa iniciou uma tendência de queda após a eleição do novo presidente dos Estados Unidos em 2024, que implementou uma série de políticas caracterizadas por uma "guerra comercial" com diversos países.
Fonte: Investing | Dados da última sexta-feira (4/4)
Nesse cenário, países como a Costa do Marfim e Gana foram taxados em 21% e 10%, respectivamente. As tarifas impostas a Indonésia e Vietnã foram ainda mais elevadas, atingindo 32% e 46%. Essa taxação imposta pelos Estados Unidos pode prejudicar significativamente as economias desses países produtores.
O aumento nos custos de exportação torna o cacau desses locais menos competitivo no mercado americano, podendo levar a uma redução no volume de vendas para um dos maiores mercados consumidores do mundo. Consequentemente, isso pode gerar uma diminuição nas receitas de exportação, afetando negativamente o Produto Interno Bruto (PIB) e a balança comercial desses países. Além disso, a menor demanda pode pressionar os preços internos do cacau para baixo, prejudicando a renda dos agricultores e das comunidades dependentes da produção cacaueira, podendo gerar instabilidade social e econômica.
A queda nos contratos futuros em Londres, de 2%, assim como o preço do cacau em si, reflete a preocupação do mercado com o impacto dessas políticas protecionistas no comércio global do cacau.
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