Maternidade em jogo e quem escolhe a partida é a mulher

O mundo patriarcal está ruindo, a crise de natalidade é resultado e a solução está na mão ou melhor dizendo, no ventre das mulheres. 


Por: Giovanna de Moraes

As mulheres têm conquistado, cada vez mais, espaço no mercado de trabalho. Elas ascendem em suas carreiras, ocupam posições de liderança e se destacam no meio acadêmico. Muitas se especializam em setores estratégicos que movimentam a economia e assumem protagonismo em ambientes que, historicamente, foram dominados por homens.

No entanto, essa trajetória não acontece sem enfrentar diversos desafios. Preconceitos, machismo estrutural e a constante pressão social para que assumam a maternidade, tornam esse caminho ainda mais árduo. Em algum momento, muitas acabam se deparando com a necessidade de escolher entre priorizar a carreira ou a maternidade.

No Brasil, um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) revela que apenas 18% das mulheres que ocupam cargos de liderança são mães. Paralelamente, a taxa de fecundidade no país vem caindo drasticamente. Em 2000, a média era de 2,32 filhos por mulher, passando para 1,75 em 2010 e chegando a 1,57 em 2023, segundo dados do IBGE.

Essa queda na natalidade não é um fenômeno isolado. A crise demográfica se espalha pelo mundo, mesmo em países onde discursos conservadores ganham força e pautas feministas são constantemente enfraquecidas. No Brasil, esse cenário se reflete em episódios como o avanço da PEC contra o aborto, que em 2024 reacendeu debates intensos ao propor a proteção da vida desde a concepção, mesmo em casos de violência sexual. Atualmente, 66 das 81 cadeiras do Senado brasileiro estão ocupadas por políticos conservadores ou alinhados a pautas cristãs, o que reforça a pressão para que as mulheres retomem aos papéis tradicionais, priorizando a vida doméstica e a maternidade.

Mesmo quando estão seguras de suas escolhas, a pressão vinda de diferentes esferas, impacta diretamente a saúde mental das mulheres. Adiar ou até abrir mão da maternidade para priorizar a carreira não representa apenas uma decisão estratégica, mas muitas vezes se torna uma questão de sobrevivência em um país onde ser mãe, especialmente sozinha, significa assumir riscos e responsabilidades desproporcionais.

O custo de criar um filho no Brasil é um fator determinante nessa equação. De acordo com um levantamento do Banco Santander, criar uma criança até os 18 anos pode custar entre R$ 239 mil e R$ 3,6 milhões, dependendo do padrão de vida e da região. Na média, os gastos giram em torno de R$ 2.500 mensais nos primeiros anos de vida. Além dos custos financeiros, existe também a carga emocional, mental e social que a maternidade exige, uma demanda que, majoritariamente, recai sobre as mulheres.

Custo para ter filhos em grandes potenciais pelo mundo.

Infográfico interativo

Essa realidade não é exclusiva do Brasil. Segundo uma matéria da revista Exame, um estudo da consultoria de recursos humanos Visier, realizado em 2022 com dados de mais de 400 mil funcionários em 70 empresas dos Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, revelou que mulheres em cargos de gerência sênior e diretoria têm, em média, 23% menos filhos do que aquelas em posições de nível inicial. Para o pesquisador Joaquim Santini, especializado no mercado de trabalho, essa disparidade evidencia os desafios enfrentados pelas mulheres que buscam conciliar suas aspirações profissionais com a maternidade.

No Brasil, esse cenário é ainda mais duro. O número de mulheres abandonadas durante a gravidez é elevado. Além disso, os índices de feminicídio e violência doméstica seguem alarmantes, tornando a maternidade uma decisão de alto risco em alguns casos. Para muitas, priorizar a carreira não é apenas uma escolha por realização pessoal, mas também uma estratégia de segurança e sobrevivência. Dados do Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (RASEAM) 2025, divulgado pelo Ministério das Mulheres, apontam que, em 2024, foram registrados 1.450 casos de feminicídio e 2.485 homicídios dolosos contra mulheres, além de lesões corporais seguidas de morte.

Enquanto isso, fora do Brasil, grandes potências buscam respostas para um fenômeno que ameaça não apenas o crescimento econômico, mas também a própria estrutura social. A crise da natalidade. Esse fenômeno, de raízes históricas profundas, revela um colapso silencioso de uma sociedade que, por séculos, desvalorizou o papel das mulheres e agora enfrenta as consequências desse desequilíbrio.

A queda na natalidade não é recente, e olhar para o passado ajuda a compreender o presente. Durante décadas, a lógica patriarcal privilegiou o nascimento de meninos em detrimento de meninas, provocando um descompasso demográfico. Embora relevante, esse fator não explica sozinho a complexidade do cenário atual.

FECUNDIDADE PELO MUNDO

  • Japão: Em 2024, o país registrou 720.988 nascimentos, uma queda de 5% em relação a 2023. Este é o menor número desde 1899.

  • China: A taxa de natalidade foi de 6,77 nascimentos por mil habitantes em 2024, com um pequeno aumento em relação a 2023.

  • Coreia do Sul: Houve aumento pela primeira vez em uma década. Foram registrados 238.300 nascimentos em 2024, 3,6% a mais que em 2023. A taxa de fertilidade subiu de 0,72 para 0,75 filhos por mulher.

  • Alemanha: A taxa caiu para 1,35 filhos por mulher em 2024, abaixo do limite de "ultrabaixo" da ONU (1,4).

  • Portugal: Registrou 84.788 nascimentos em 2024, uma queda de 1,4% em relação a 2023.

  • Estados Unidos: A taxa foi de 12,009 nascimentos por 1.000 pessoas em 2024, com aumento absoluto, mas uma taxa de fertilidade em queda, atualmente em 1,665 filhos por mulher.

  • Brasil: A taxa de fecundidade caiu de 2,32 filhos por mulher em 2000 para 1,57 em 2023.




Dados: Banco mundial de natalidade


Na China, a política do filho único, implementada em 1979, estimulou o nascimento de meninos em detrimento de meninas, gerando desequilíbrios de gênero que persistem até hoje. Práticas como aborto seletivo e abandono de meninas foram comuns. Na Índia, um cenário semelhante se consolidou devido à forte cultura patriarcal, reforçando a ideia de que meninas eram menos valiosas.

Esse padrão se repetiu em vários países da Ásia e do Oriente Médio. Quase 50 anos depois, tanto China quanto Índia lidam com uma significativa disparidade entre homens e mulheres. Paralelamente, o envelhecimento populacional se acelera. As pessoas vivem mais e permanecem aposentadas por até 40 anos, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), exigindo uma base ativa de trabalhadores que está cada vez menor.

Na Europa, embora o contexto histórico seja diferente, os efeitos são semelhantes. O avanço na educação e na independência financeira das mulheres fez com que muitas adiassem ou até abrissem mão da maternidade. O alto custo de vida, a sobrecarga nos cuidados com os filhos e o impacto na trajetória profissional são fatores decisivos. Pesquisas mostram que muitos casais europeus que têm um filho não planejam ter um segundo, e nem mesmo os incentivos financeiros oferecidos em países como Alemanha, China e as nações nórdicas têm sido suficientes para reverter essa tendência.

Essa realidade se repete globalmente. Mulheres enfrentam jornadas duplas ou triplas, um mercado de trabalho que penaliza a maternidade e uma cultura que segue responsabilizando-as quase exclusivamente pela criação dos filhos. Diante disso, cresce o número de mulheres que decidem não ter filhos ou não se envolver em relações afetivas.

A escolha e suas nuances

Além dos desafios profissionais, a decisão de não ser mãe também passa por questões emocionais e sociais. No Brasil, o histórico crescente de mães solo gera, em muitas mulheres, o receio de enfrentar as mesmas dificuldades que suas mães viveram. Atualmente, mais de 11 milhões de mulheres criam seus filhos sozinhas no país, um aumento de 17,8% na última década, segundo a FGV. A maioria dessas mulheres é negra e vive sem rede de apoio.



                            
Mesmo quando a maternidade ocorre dentro de uma relação estável, isso não garante que a mulher esteja livre da sobrecarga. Em muitos casos, os relacionamentos terminam, e embora o pai esteja presente nos primeiros anos, as responsabilidades acabam recaindo quase exclusivamente sobre a mãe. Para muitas mulheres, abrir mão da maternidade é também uma forma de se proteger de uma realidade marcada pela sobrecarga, abandono e violência estrutural.

Thamirys e Carolina são exemplos de como essa realidade se manifesta de maneiras diferentes. Thamirys, mãe solo de Alice, de três anos, trabalha em uma empresa que oferece apoio para que ela possa conciliar a maternidade com suas demandas profissionais. Nas redes sociais, ela compartilha sua rotina exaustiva: preparar a filha, levá-la à escola, trabalhar o dia inteiro e, à noite, cuidar da criança, que enfrenta desafios no sono devido a um salto de desenvolvimento. Thamirys reconhece que está em uma posição de privilégio, já que nem todas as mulheres têm a sorte de contar com uma empresa que compreenda suas necessidades. Sem esse apoio, ela afirma que seria difícil manter as despesas básicas, como escola, alimentação e saúde.

Carolina Teixeira, professora da rede pública, viveu uma realidade diferente. Mãe de uma adolescente de 14 anos, foi abandonada pelo pai da criança ainda no primeiro ano de vida da filha. Aos 12 anos, a jovem desenvolveu quadros de depressão profunda e automutilação, o que exigiu acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Carol, com uma rede de apoio muito limitada, restrita à sua mãe , precisou conciliar sua vida profissional com o cuidado da filha e sua própria saúde mental. Ela relata ter enfrentado crises de ansiedade e dificuldades financeiras, especialmente porque seu ex-companheiro não contribuiu com nenhum valor para o tratamento da filha.

Efeitos emocionais da pressão

De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 26% das mulheres apresentam sintomas de depressão pós-parto no Brasil. As alterações hormonais e as intensas transformações físicas e emocionais que ocorrem durante a gestação são gatilhos importantes para o surgimento ou agravamento de transtornos mentais, impactando diretamente a saúde da mãe e do bebê.

A psicóloga Giovanna Taboas, especialista em neurociência e comportamento humano, além de gestão de pessoas, falou sobre como o mercado tem lidado com a maternidade e quais estratégias as empresas adotam para acolher e apoiar mulheres que escolhem trilhar esse caminho da maternidade.

1. Como o ambiente corporativo enxerga a maternidade atualmente?

“Existe um movimento social muito forte acontecendo. Falar sobre saúde mental e vulnerabilidade se tornou um marco no mundo corporativo. Desde a chegada das startups, com modelos mais 'modernos' de trabalho, as empresas tradicionais precisaram se adaptar — seja com home office, benefícios flexíveis ou cuidados com a saúde física e mental — para se manterem competitivas.

Além disso, as normativas não escritas acabam guiando o recrutamento: o que é ou não de bom tom perguntar, como perguntar... E, aos poucos, conseguimos modificar esse ambiente. Hoje, há diretrizes e práticas de diversidade que não existiam há 20 anos. Mas o movimento ainda é lento.”

2. No passado, era comum recrutadores abordarem em entrevistas as intenções da mulher em engravidar. Esse cenário mudou?

“Sim e não. Majoritariamente, sim, mas ainda vemos relatos de empresas e recrutadores indo contra a maré. E, se não perguntam diretamente, muitas vezes a exclusão ocorre no shortlist (lista final de candidatos).”

3. Mulheres que retornam da licença-maternidade tendem a abandonar suas carreiras, ainda que temporariamente?

“Essa pergunta é complexa porque depende de muitas questões subjetivas e pessoais. Há mulheres cujo maior sonho é ser mãe e se dedicar integralmente a esse papel — algo que a sociedade ensina desde a infância.

Além disso, há países com legislações muito rígidas, em que a licença-maternidade dura apenas duas semanas, e qualquer extensão é não remunerada, como nos Estados Unidos e na Austrália. No Brasil, o retorno envolve avaliar rede de apoio, questões sociais, emocionais e financeiras. Cada caso é um caso.”

4. Você acredita que o aumento dos discursos sobre a valorização da construção familiar contribui para a diminuição de profissionais no mercado de trabalho?

“Estamos vivendo um movimento de retrocesso. Antes, os jovens buscavam mais liberdade de escolha, mas agora vemos um retorno ao modelo tradicional: mulheres em casa cuidando dos filhos e homens como provedores. Existe um fator social e religioso muito forte nisso.

Isso não significa que todo mundo seguirá esse caminho, mas é notável esse movimento de retomada de papéis tradicionais.”

5. Quais são os efeitos psicológicos mais comuns em mulheres que precisam conciliar maternidade e carreira?

“Culpa. A sensação constante de não ser suficiente em nenhuma das áreas, principalmente no papel de mãe e mulher. No longo prazo, essa sobrecarga pode levar à ansiedade e até à depressão.”

6. Como as empresas enxergam a gravidez de colaboradoras, especialmente aquelas que ocupam cargos de liderança?

“Depende muito da cultura da empresa. Mas, com a chegada de uma legislação mais focada em saúde mental, temos visto mais apoio do que rejeição. Isso, claro, não significa que o preconceito tenha desaparecido, mas o cenário começa a mudar em muitas organizações.”

7. Existe alguma relação entre depressão pós-parto e o medo ou a vontade de retornar ao trabalho?

“Existem estudos que investigam isso, mas não há uma conclusão 100% comprovada. A depressão, por si só, é uma questão química e cerebral, que pode surgir em diferentes fases da vida.

O trabalho pode funcionar como um estímulo que gera medo ou insegurança, mas não é, necessariamente, o causador da depressão. De forma leiga, é como se o cérebro não estivesse realizando as sinapses necessárias, não conseguindo se autorregular biologicamente  uma questão hormonal e bioquímica.”

Caminhos Para um Ambiente Mais Justo

Felizmente, muitas empresas estão repensando suas práticas. Políticas de licença parental estendida, auxílio-creche, flexibilização da jornada, espaços de acolhimento para mães e programas de retorno ao trabalho após a licença têm ganhado espaço.

Mais do que isso, é urgente desconstruir a ideia de que ser mãe compromete a produtividade. Pelo contrário, inúmeras pesquisas já mostram que profissionais que são mães desenvolvem ainda mais habilidades de organização, empatia, resiliência e resolução de problemas.

Promover um ambiente de trabalho mais justo para mães, e pais, não é um favor, mas uma responsabilidade social que beneficia a todos. É garantir que mulheres não precisem escolher entre ter uma carreira ou uma família, mas possam exercer ambos os papéis de forma digna, saudável e equilibrada.

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